sexta-feira, 13 de março de 2009

O Comandante Negro das Matas!

Por Paulo Fonteles Filho.

Dissera-me, certa vez, a castigada mulher de pés e mãos endurecidas pelo trabalho sol a sol com a mesma enxada de vários anos que, Osvaldão, havia, há muito, se transformado em lobo. E, mata adentro, uivando, buscava seus companheiros insurretos, esgueirando-se da onda de fogo dos fuzis inimigos.
Osvaldão adormece no fim da pista de pouso onde desciam os búfalos com generais, tropas, torturadores, funcionários das mineradoras e da CIA, em Xambioá. Há muitas lendas de como atuou, nas contendas araguaianas, o Comandante Negro das matas. Acerca de seu desaparecimento em meados de 1974 uma versão ganhou força ao longo dos anos: teria sido um sequaz do Major Curió, Arlindo Piauí?
Há muito, o famigerado Major Curió e seu círculo de pistoleiros fez crer, na região do Araguaia, que seu mais confiável bate-pau seria o responsável pelo tiro algoz em Osvaldão: credencial para a covardia do matador de dezenas de lavradores, na maioria composta por lideranças populares do Baixo – Araguaia
O certo é que o Comandante Negro, filho da mais proletária de todas as raças lutou até apagar os olhos, com a Parabellum na mão, insubmisso, consciente da mata e dos caminhos da história.
Ocorreu em sua morte o mesmo ritual para quem, em regimes terroristas, defende e aspira a liberdade: o corta-cabeças. Como Tiradentes, ficou exposto por dias sobre a legenda do triunfo dos vencedores.
Tido também por Mineirão, angariou em poucos anos a confiança e a admiração das gentes simples e humildes, da Gameleira à Faveira, de Santa Cruz até Xambioá, de São Geraldo até Apinagés, de São João à São Domingos das Latas.
Conheceu as pedras pontiagudas e esverdeadas do Araguaia, garimpou na Serra das Andorinhas e em Porto Franco. Apreciando os minerais na lua metálica foi profundo como a terra silenciosa.
Foi regatão respeitado por praticar preços justos.
Mata adentro, procurou desvendar os segredos da floresta, ajudou a fazer partos e de sua boca primeira ecoou a poética do “Romanceiro da Libertação”.
Educou o povo e pelo povo fora educado, como o personagem de Lautaro, no poema de Neruda. Fez casas e roças. Teceu belas manhãs com estórias do Partido Comunista.
Fez amigos e namoradas. Caçou, amou, exortou a liberdade, foi justiceiro com aqueles que espoliavam o povo. Fez discursos à hora do crepúsculo, ensinou a arte-militar.
Foi político, mariscador, castanheiro e garimpeiro.
Filho fez também; segundo dizem, dois.
Ao pé da Serra evoluiu como vento. Mergulhou nos banzeiros minerais dos Martírios. Dormiu nas redes e se fez povo, povo da mata.
Não matarão Osvaldão porque seu feito decorre do feito de sua gente e de sua época.
O povo que lhe deu farinha e esperança, hoje lhe dá a vida nos versos e romances camponeses. A plena vida que o coração do homem ilumina.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Abel

Abel

Por Paulo Fonteles Filho

Sob as estrelas do Baixo-Araguaia andava o Capitão rebelde, com um pequeno grupo de gatilheiros, palmilhando o itinerário das lutas camponesas no Sul do Pará. Sua gente era formada pelos degredados do grande capital que, no processo de colonização da Amazônia chegou primeiro, aramando as terras, constituindo através da fraude e da pistolagem nababescas propriedades, tudo isso com a anuência da força do estado terrorista dos generais.
Aqui, o vil metal chegou primeiro e as terras prometidas por Garrastazu Médici, nas selvas e inóspitas matas eram tomadas por exércitos de jagunços.
Abel, o Capitão-do-Mato, era o pesadelo mais profundo dos senhores das extraordinárias áreas não-cultivadas e improdutivas, dos pistoleiros, grileiros e “gatos” do trabalho escravo.
Toda espécie de cabra-safado suava frio com a noticia de que o gatilheiro estava por perto, de que não teriam sossego, de que o risco que corre o pau corre o machado, dos justiciamentos, de que em cada toco de árvore poderia haver uma vinte-e-dois mirando para as ruínas do latifúndio.
Abel correspondia à força que se levanta do povo, a voz inclemente dos espoliados. Considerava que a contenda contra os grandes proprietários era uma guerra e de que o lavrador tornara-se o protagonista fundamental.
Ao sopro do caudaloso rio dos karajás, o chefe dos gatilhos distribuía alqueires e infundia terror nos tiranetes do Sul do Pará. E não apenas na região espraiada do Bico-do-Papagaio: suas andanças foram notadas na Pará-Maranhão onde atuava outro irmão de afazeres, o também gatilheiro Quintino.
De baixa-estatura, tinha preparo político, aspecto dirigente de qualquer luta.
A pouca memória de sua pessoa afirma que andou com os guerrilheiros do Araguaia e de que era sutil, mestre em esgueirar-se perto das tropas oficiais e de que mirava, muitas vezes sem estampir, entre os olhos das fardas bem graduadas.
A pouca memória de sua pessoa afirma sobre um contundente ódio aos fascistas, coisa aprendida com um velho chamado “Cid” e com um negro de quase dois metros de altura.
A milícia revoltosa de Abel acertou muitas contas: dezenas de sequazes da carcomida estrutura fundiária foram para o inferno. Com mosquetões, rifles, espingardas, carabinas e facões priorizavam o método ideal de luta do mais fraco contra o mais forte.
E isto ocorreu num período efervescente para a organização dos camponeses araguaianos e mais de duzentos e cinqüenta mil hectares de terras ociosas foram ocupadas nas mais longínquas matas paraenses.
Meu pai, o advogado de posseiros, Paulo Fonteles, dizia em 1980 que toda essa luta era produto de uma consciência altaneira e que peões, muitas das vezes analfabetos, discutiam de frente com os coronéis do GETAT (Grupo Executivo de Terras Araguaia-Tocantins), instrumento da intervenção militarizada da ditadura para com as questões fundiárias na região.
Abel aprendeu a ler e escrever na mata na época que antecedeu a guerrilha e durante meses consumiu “Os Sertões” de Euclides da Cunha, emprestado a ele por um jovem combatente.
Após 12 de abril de 1972, com o ataque das tropas oficiais na região da Faveira, embrenhou-se na mata e entre ações de fustigamentos ou nas áreas de refúgio das Serras dos Martírios inspirava-se em Pajeú, o Comandante militar canudense.
Foi em São Geraldo do Araguaia que ouvi falar do gatilheiro Abel.
Fruto da generosa gente pobre foi, menino, cortador de juquira.
Contra todo tipo de iniqüidade rebelou-se e só pode compreender o conteúdo dos grilhões ao juntar-se, em fins de 1972, a insurgente Força Guerrilheira do Araguaia.
Logo, logo, com maestria, aprendeu a manusear um pau-furado de fazer fogo e de que o apoio popular é indispensável nas pequenas e grandes contendas da luta política.
Nunca se soube, ao certo, de como conseguiu escapar da terceira e última campanha de cerco e aniquilamento que, militarmente, derrotou o movimento guerrilheiro.
Depois de vários meses onde crescem as árvores e as grotas, no Saranzal, buscou a preparação de uma casa onde pudesse dar cabo a uma roça e sobreviver: aprontou as forquilhas, a cumeeira, o caibro e cortou as melhores folhas de babaçu. Com um velho facão caçava tatus e jabutis nas clareiras.
Sabia dos horrores que muitos haviam passado nas mãos das patrulhas. Sabia das torturas e do corta-cabeças. Sabia que naquelas terras a vida era perigosa, cheias de rastejadores e de grileiros a soldo dos grandes proprietários. Sabia que as tropas oficiais com seus “secretas” realizavam uma operação para apagar os vestígios e os desdobramentos dos embates com a insurreição.
Muitas coisas aconteceram a partir de mil novecentos e setenta e seis.
A oposição sindical organizara-se para enfrentar os prepostos do Ministério do Trabalho e de Jarbas Passarinho nas eleições para o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia. Animados pelos ensinamentos do “povo da mata” e pelo setor combativo da igreja católica, os teólogos da libertação, filhos de Casaldaglia e Boff, muitos lavradores passaram a debater, iluminados pela destemida luz da luta mais geral pela redemocratização do Brasil a necessária retomada do Sindicato para as mãos legitimas dos lavradores.
A iniciativa campesina custou à vida de várias e combativas lideranças, como, por exemplo, “Gringo” de Itaipavas. Um despertar de consciências pululava pelos sertões do Araguaia e uma feroz reação abateu-se novamente contra os trabalhadores rurais.
Abel, diante da violência injusta procurou a autodefesa. Armou-se e formou uma milícia de iguais e como um vulto esperançoso chegava nas choças em densas madrugadas porque tinha a sabedoria que em sua vida de contendas a noite mais profunda proporcionava segurança, comida e informações.
Na luz dos candeeiros olhava nos olhos de seus irmãos de classe e no chão de terra batida preparava a resistência camponesa.
Como um espectro ia de comunidade em comunidade ensinando arte-militar, o valor da união e umas histórias de que os trabalhadores tomaram o poder político em paises distantes. Orientava que as roças deveriam ser plantadas umas ao lado das outras como precaução para evitar a ação da pistolagem e depois partia para lá do que se sabia, sem deixar rastros.
Centelha de coragem e valentia levantou as mentalidades pelos castanhais e sertões.
O capitão rebelde dos gatilhos deu dignidade a pobreza: foi profundo como a formação do povo brasileiro.
Em mil novecentos e oitenta e seis não fora mais visto.
Transformou-se em onça que em noites densas infunde terror nos pastos do latifúndio.